Se o ócio é a oficina do diabo, eu não sei. Só sei que com tanto tempo vazio, a filmografia do Woody Allen está sendo posta em dia. A Era do Rádio é um delicioso filme, contado com uma costura de crônicas da vida privada, recheada de bom humor nos diálogos afiados construídos por Allen. Dessa vez, um olhar juvenil observando a vida adulta em suas situações comezinhas. Só agora, revendo - ou vendo pela primeira vez, como esse -, percebo como Allen alterna a linha de suas histórias, flutua com diferentes focos e, as vezes, diferentes narradores. Sem dúvida, um belo contador de histórias.
A música escolhida está no filme, não na versão da Marisa. Era só um pretexto para ouvi-la novamente.
Em uma semana tão feminina, não sei exatamente o que pensar. Entre os sussurros de Bergman e os gritos de Luc Besson, acompanhados de todas as irmãs de Allen e Yimou, sobrevive um universo reprimido, violentado. Woody Allen, com sua Nova Iorque cosmopolita ainda apresenta uma possibilidade de independência e autonomia, mas um cisco ficou - todo o medo passou? Toda brutalidade masculina se esvaneceu na civilização pós-industrial? Se em algum lugar esses medos ainda moram, e a tensão entre o espaço que a mulher pode ocupar e a violência que nele pode ocorrer ainda existirem, eles estão como fantasmas. Se reproduzem na calada da noite, e se alimentam de desejos e frustrações que, se de todo parecem masculinas, são irrigadas pelo gosto da violência tão presente em todos os sexos.
Devo confessar, eu ouço os deuses. Desde criança, aprimoro meus ouvidos e percebo, em pequenos sussurros, seus manifestos. Os ritos, o templo, a epifania - suas formas pouco importam. Em algum momento, tudo se faz claro para mim. Bem, nos últimos dias, ouvia o chiado, mas não entendia o recado. A princípio, passei por um sutil espanto, e me indaguei se não havia sido abandonado. Ou se, por algum sentimento perdido, estivesse incapaz de ouvir. Mas, então, o tamborilar se fortaleceu, e a verdade se revelou, mais uma vez.
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Já comentei sobre a sina de uma geração quando da morte de Glauco e da homenagem a Hughes. Os filhos dos 80 viram, como um replicante diante do criador aceitando a inevitabilidade da morte, estrelas brilharem e desaparecerem, deixando a sensação que nenhum rastro ficaria para trás. Quando o futuro chegou, percebemos que tantas coisas continuam vivas, apesar de combalidas - como a coluna de Hebert, que se curvou e quebrou, mas sobreviveu. As dores ficam, mas só dói enquanto nos levantamos, e continuamos caminhando. Como dizia o filósofo Balboa, a vida bate forte. Essa é uma geração que soube reconhecer a tirania do destino e, apesar disso, seguir em frente, não importando onde isso vai dar.
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E os deuses com isso? Anote o recado: para todo Guerreiro, o que importa não é a vitória; a vida é feita nas batalhas. O troféu é um lustre, uma ilusão de que um momento pode ser congelado e guardar, dentro de sua redoma de vidro, uma felicidade eterna. A felicidade é para os fracos. Isso é algo que só os fortes - e Guerreiros - entenderão.
Queria ser como Dumont, com sua casa de tudo pouco, em local bucólico com direito a almoço delivery. Mala pequena, pouca coisa pra deixar pra trás. Um chuveiro - bom chuveiro é coisa pra poucos -, uma cama e uma mesa, que na verdade são o mesmo. E o céu. Subir no telhado, apontar a lupa, procurar estrelas. Mirar a lua, investigar mistérios e lembrar da caçadora, que da janela de sua carruagem perseguia a bola brilhante por entre os obstáculos, que são muitos. Tão grandes que não vejo seu rosto, caçadora, e estou com saudades. Queria procurar o grande planeta Solaris, terra onde sonhos se moldam em argila. Mas tudo que vejo, pelo pequeno olho mágico do claustro onde me encerro, é um mundo às avessas, onde o barro se desfaz, e seu pó destrói tudo ao redor. Ao que tudo acaba, inclusive os sonhos possíveis. Imagine os impossíveis? Não resta mais nada, nem Dumont, nem você, caçadora, com seus olhos de menina que me faziam ver o mundo de outra forma. Continue a contar as estrelas que encontra na primeira leva da noite, a enxergar castelos por entre as nuvens e a sonhar com seu pequeno príncipe, que um dia será outro, pois que mais nada posso fazer a não ser sonhar que um dia tive o sonho de ter você.
Entre a maestrina Márcia Guapyassú e os meus jovens Brigadeiros dos bancos escolares, uma questão que nos move - o conhecimento adquirido pela reflexão como motor de deslocamento. Perguntem ao Truman Burbank.
Nascido da importação de formas
musicais jamaicanas por músicos do Bronx, em Nova York - não sem a referência
da música eletrônica alemã do Kraftwerk, da disco music, da capoeira, dos
discípulos de Marcel Marceau e dos filmes de Bruce Lee -, o hip-hop, disparado
por Clive Campbell (Kool Herc) e Afrika Bambaataa, vem sendo, desde que se
tornou amplamente conhecido, a partir do início dos anos 1980, a expressão mais
acabada de uma mistura de nacionalismo negro com direito à visibilidade das
camadas desfavorecidas. Como tal, nenhuma outra forma de arte popular ou de
massas se lhe pode comparar em força internacional, superadora do modelo de
distribuição que tem os Estados Unidos como centro gerador.
A ênfase no nacionalismo negro
sobre o brasileiro - e a autodefinição de classe por sobre a de região ou
nacionalidade - se dá de forma mais legitimada do que nunca. O álbum
"Sobrevivendo no inferno", dos Racionais, é a obra-prima dessa
experiência entre nós.
Nas entranhas das engrenagens que dão vida à cidade, um garoto sonha com um mundo-máquina e seu grande relojoeiro, capaz de fixar todos os problemas. Desemperrar as catracas, liberar os fluxos, aparafusar o que estiver solto. Encaixar o que falta. Enquanto as artérias urbanas pulsam, crianças são arrastadas para longe de suas famílias, numa corrente contínua até que emperrem como tampões gordurosos as válvulas de escape. Enquanto as cadeias de abastecimento se retroalimentam, jovens são moídos pelos pontos de fissura onde membros são recompostos com metais e parafusos, até que enferrujem e imobilizem células de segurança e sobrevivência. Enquanto os gerenciadores operacionais resignificam os procedimentos para manter o estímulo mobilizador, cérebros são descartados por não mais atenderem às demandas até que não haja mais qualquer possibilidade de negação às falhas do sistema.
Enquanto isso, Hugo Cabret, aprendiz de relojoeiro, lubrifica os encaixes, fixando sonhos capazes de nos distanciar de tudo que é problema, para que continuemos a empurrar a grande roda da vida do mundo-máquina, onde a caixa preta projeta uma verdade sempre de cabeça pra baixo.