quinta-feira, 31 de março de 2011

A obra aberta

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O comentário mais inspirador sobre a transformação que a internet provocou na vida cultural foi publicado por José Miguel Wisnik em sua coluna de 5/3/2011. Na era pré-digital, “as coisas eram decantadas pelo tempo. Porque o seu valor e seu preço simbólico eram ditados pela capacidade de sobreviver à morte. A cultura era em grande parte um culto aos mortos”. Hoje, aumentou “assustadoramente o número dos vivos”. Wisnik se pergunta: “Quem dá conta da cascata infinita de autores de tudo? Quem decanta essa massa informe e simultânea, epidérmica, cheia de potencialidades e de engano?” Indagações que contêm os principais desafios da cultura contemporânea. O que fazer com tanta vida, transbordante e caótica, que não cabe mais nos modelos de negócio e nas instituições artísticas que até outro dia tentavam organizar nossa relação com a cultura? Sintetizando: a cultura dos mortos se fundamentava na escassez; a cultura dos vivos produz cada vez mais abundância — para o mal e para o bem. Como dizia um velho ditado: não devemos ter medo dos mortos e sim dos vivos. Estamos aprendendo a brincar com o fogo do novo poder coletivo. Vamos ainda errar muito. E descobrir aos poucos como usar as vantagens. Pense nos exemplos de uma gravadora, de uma produtora de filmes, de uma empresa de rádio e TV, de uma galeria de arte. Eram poucos os artistas contratados, eram limitados os recursos que faziam com que as obras fossem produzidas, ganhassem visibilidade e fossem distribuídas no restrito circuito de comércio. E mesmo assim nem tudo o que era lançado fazia sucesso: um raro hit pagavao prejuízo de muitos fracassos — mas a conta tinha que fechar. Portanto sempre foi reduzido o número lançamentos e c o n t r a t a ç õ e s , mesmo em épocas de grandes lucros. As restrições orçamentárias e mesmo físicas (o espectro por ond e p o d e m s e r transmitidas ondas radiofônicas tem limites precisos) se combinavam com a crença, provavelmente “verdadeira”, de que o talento é igualmente um bem escasso. Estou relendo “O mal-estar na civilização”, na nova tradução (a primeira diretamente do alemão) de Paulo César de Sousa. Ali Freud também denuncia a “fraqueza” do método da sublimação dos instintos através da arte, pois não é de “aplicação geral” e “pressupões talentos e disposições especiais”, aos quais poucos têm “acesso”. Então tudo conspirava para que a produção de arte fosse vista necessariamente como uma atividade de poucos para muitos. E os poucos eram filtrados por uma série de intermediários para chegar aos muitos. A internet bagunçou com esse coretinho. Hoje qualquer menino com uma webcam pode transmitir sua nova dança diretamente da laje da favela para o mundo inteiro (e alguma dessas danças viram logo “a melhor dança de todos os tempos” — já viu a moda planetária do “choque” c o l o m b i a n o e m bit.ly/9EVGQe?), através de novos tipos de intermediários bilionários (e não menos “pervertidos”) — por exemplo, o YouTube e o Twitter — que não mais selecionam o que vão lançar, e sim aceitam tudo e mais alguma coisa. É Arte com A maiúsculo? Talvez não seja, talvez seja algo diferente, um jogo de diversão coletiva, sem pretensão à eternidade. Um novo mundo pior ou melhor? Quem pode saber com certeza? Se como diz Freud, em seu “Mal-estar”, a finalidade da vida é “a busca da felicidade”, penso que hoje há mais gente feliz, “brincando” de ser artista, como faziam seus antepassados em outras brincadeiras que ficaram conhecidas como folclore e onde, geralmente, não havia diferença entre quem estava no palco e na plateia. Essa mudança radical e rapidíssima, da escassez para a abundância, exige outras posturas diante da criação, sua distribuição e seu consumo. Muita gente já apontou, mas isso fica cada vez mais claro, que estamos deixando de lado o império da propriedade para entrarmos na era do serviço. Eu não quero ser o feliz proprietário de todos os vídeos de gente dançando choque colombiano, até porque isso seria impossí v e l — ag o r a mesmo dezenas de vídeos com novos movimentos de choque estão sendo publicados. Quero poder ver esses vídeos na hora que quiser, e melhor, quero poder fazer meus remixes desses vídeos e publicá-los na rede, retroalimentando a brincadeira. Então quem quiser que copie meu vídeo à vontade, e espalhe por aí. Provavelmente não vou nem guardar cópia desse vídeo, que se transformará apenas num item perdido no meu mar de bookmarks . Claro que seria bom ganhar dinheiro com o meu remix, pagando também para os produtores de todas as imagens que remixei. Isso será cada vez mais fácil, pois saberemos exatamente quantas pessoas assistiram ao vídeo completo, ou quantas outras fizeram remixes do meu remix. Outra consequência então: o melhor é deixar a obra aberta, facilitando sua circulação de diversas maneiras. Quanto mais gente republicála ou remixá-la, melhor. A abertura está se tornando a norma, mesmo para o bom senso comercial. O segredo e a proteção atrapalham. Vide o caso do Kinect, aparelho para games da Microsoft. Logo após seu lançamento, hackers abriram o aparelho e inventaram para ele novos usos. A Microsoft desistiu de proibir e começa timidamente a facilitar a vida dos hackers lançando um kit de desenvolvimento. Os hackers agora podem ganhar dinheiro ajudando a Microsoft a lucrar mais com o Kinect. O que deve ser bom para todo mundo. Os vivos agradecem. A cultura dos mortos se fundamentava na escassez; a cultura dos vivos produz cada vez mais abundância.
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 Hermano Vianna

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