sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Por uma ética ciborg

O colunista do jornal O Globo Arnaldo Bloch entendeu que o filme Avatar, mais que uma pipoca épica, é um tratado sobre uma nova ética. Publicado na página móvel Logo.

Para mim, o buraco é mais embaixo.


O começo deixou-me colado à poltrona: as naves espaciais, o mergulho na atmosfera, o pouso do material bélico. Discurso de combatente, painéis digitalizados, o corpo mergulhado em uma capsula de vidro, a conexão cerebral. Os poucos minutos que me levara até aqui eram de um terreno conhecido, construído por uma educação visual de algumas décadas. A cada imagem eu resgatava um outro filme, uma outra cena, um tema, formando uma trilha a ser seguida, tão bem conhecida por mim. A estética tão familiar ganhava frases completas, dando sentido a um quebra-cabeças nunca antes montado.
Quando o download do primeiro clone concluiu-se, senti a adrenalina da personagem correr pelo meu corpo - sua ânsia pelo domínio do espaço, a tensão do enrijecimento, a velocidade do movimento. O espectador senta-se para desincorporar, abandonando a carne mal posta sobre o assento para mergulhar mentalmente sobre o plano à sua frente. Quem está sendo descarregado em um novo corpo, ele ou eu? Não dá para pensar muito. Um passado tão caro ao americano torna-se tão presente. A ocupação militarizada, o pesado equipamento, a ânsia pela terra arrasada. Como ectoplasma desse espectro, o forte. Não se faz uma aventura como esta, de mergulhar cego na grande escuridão desconhecida, se não for um bravo. Só alguém capaz de encarar a adversidade, de construir sobre o nada, de transformar o seu medo em arma, pode dar vazão a um desbravamento como este. É nesse momento que a ideia de um avatar torna-se menos importante. Os obstáculos são concretos e, cá pra nós, eu vim aqui para vencer desafios, ou melhor, vê-los serem vencidos. Um novo corpo apenas possibilita uma nova vida, mas não faz de ninguém uma nova pessoa. Os brutos continuam amando.
Mas uma pergunta, aos poucos, se coloca sobre a mesa. Por quê? O esforço, o risco, o trauma são para quê? O que está subjacente a isso é a noção de sobrevivência. As fortes lideranças impositivas dos bravos desbravadores, seja o capitalista, seja o belicista, enxergam apenas a extração, o consumo, a autossatisfação. Homens cartesianos, de objetivos claros e estratégias racionalmente explicáveis, seguidos por corpos mudos, obedientes, replicantes. Seus adversários, no entanto, oferecem como resistência o diálogo, a rede, a holística. Ao final, o conceito vence o instrumento, uma nova ordem se impõe sobre os corpos modificados.
Mas não nos enganemos. As explosões, os voos acrobáticos, a virilidade estão o tempo todo presente. O músculo venceu o parafuso graças a uma nova ética, e o orgânico se impôs sobre o metal. O soldado agora é um grande chefe guerreiro, e suas pernas estão de volta, sem a necessidade de cirurgias e implantes. Eu, satisfeito, sacudo minhas pernas dormentes, manquitolo pelo corredor de saída e vou em busca do meu Maclanche Feliz .

...

Só lamento que a razão de tudo se esvaisse ao final: porque desmontaram o ciborg?

Trailer - Avatar from jadorelecinema on Vimeo.

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